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10 de Junho de 2024

“A comida é um escape para mim”: como o abuso sexual pode influenciar a nossa relação com a comida

Por ser uma experiência potencialmente traumática, a violência sexual pode gerar consequências graves. Uma delas é ter uma relação problemática com a comida. Assim, o sobrevivente pode encontrar na comida uma forma de gerir emoções e de sentir algum conforto. No entanto, esta relação com a comida pode tornar-se disfuncional, aumentar o sofrimento e gerar outros problemas.

Depois do abuso, o sobrevivente pode sentir-se constantemente em alerta, sem controlo, inquieto e inseguro. Numa tentativa de recuperar a sensação de controlo e diminuir a ansiedade, pode recorrer a comportamentos de controlo relacionados com a comida. Poder decidir quando, como e o que vai comer, permite ao sobrevivente sentir uma maior segurança. Esta relação torna-se previsível, estável e segura e, em alguns casos, pode ser vista como a única relação na qual o sobrevivente pode confiar, com a certeza de que nunca será abandonado, rejeitado ou magoado.

Em algumas situações, comer pode funcionar como uma forma de afastar e evitar memórias e pensamentos intrusivos. Para além de ajudar a desfocar a atenção do abuso, permite anestesiar as emoções negativas relacionadas com o que aconteceu. Nos momentos em que recorre à comida, o sobrevivente pode encontrar conforto e sentir-se temporariamente melhor.

Noutros casos, o medo de sofrer novos abusos pode ser tão intenso que leva alguns sobreviventes a acreditar que se se tornarem fisicamente “menos atraentes” ficarão mais protegidos e menos vulneráveis a novos abusos. Esta crença pode levar a comportamentos como comer de forma descontrolada e ganhar muito peso ou, no extremo oposto, deixar de se alimentar e emagrecer excessivamente. 

Do mesmo modo, para alguns homens vítimas de abuso sexual, a ideia de ter intimidade ou se envolver sexualmente com outra pessoa pode ser assustadora. O sobrevivente pode alimentar-se mal, em quantidades desadequadas e negligenciar o cuidado com o seu corpo, pois acredita que isso o manterá afastado das outras pessoas e conseguirá, assim, evitar a intimidade. Por outro lado, alguns sobreviventes aumentam propositadamente de peso, com o objetivo de se tornarem grandes e robustos para se sentirem menos indefesos e frágeis.

Devido a sentimentos de culpa e vergonha relacionados com o abuso sexual, é comum homens sobreviventes sentirem que são inferiores aos outros, ou que não têm valor. Em alguns casos, os sentimentos de culpa são tão fortes que levam à necessidade de se punir e castigar, como se tivesse feito algo de muito errado e merecesse sofrer. Negligenciar a sua saúde e bem-estar ao comer de forma descontrolada e em excesso, pode ser uma forma de se maltratar e de autopunição.

Para além do impacto negativo na saúde física do sobrevivente, esta relação disfuncional com a comida, intensifica sentimentos negativos como culpa, vergonha, raiva e desadequação, reforça crenças de auto desvalorização e não permite  ao sobrevivente ultrapassar de forma adequada o trauma que sofreu.

Durante o processo de apoio psicológico, o sobrevivente pode ganhar consciência de que a relação com a comida está a ser danosa para si e encontrar alternativas saudáveis que permitam gerir adequadamente as emoções associadas ao abuso. Paralelamente, poderá aprender a olhar para si de forma menos crítica e punitiva, e a compreender que merece ser cuidado e valorizado. Nestes casos, o objetivo é ajudar o sobrevivente a adotar comportamentos mais saudáveis e benéficos para si, que permitam cuidar do seu bem-estar e focar-se no presente.

Se se identifica com este texto e sente que utiliza a comida para gerir emoções, procure apoio. 

A Quebrar o Silêncio está disponível para recebê-lo através da Linha de Apoio 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt.