O presidente da Quebrar o Silêncio foi ouvido hoje na Assembleia da República para se pronunciar relativamente à legislação sobre Abusos Sexuais Contra Menores. Abaixo partilhamos o discurso inicial.
Boa tarde a todas e a todos.
Chamo-me Ângelo Fernandes e represento a associação Quebrar o Silêncio que presta apoio a homens e rapazes vítimas de violência sexual.
Começo por agradecer a oportunidade de ser ouvido em relação a estas matérias.
A minha mensagem de hoje prende-se essencialmente com a necessidade e urgência de alargar o período do direito à denúncia e o alargamento da prescrição do crime.
O abuso sexual de menores é uma violação grave dos direitos humanos das crianças. É também uma experiência potencialmente traumática que pode ter um impacto disruptivo no desenvolvimento e na vida das crianças. Neste sentido, é urgente que Portugal dê passos sólidos na proteção dos direitos destas crianças.
O Conselho da Europa indica que uma em cada cinco crianças é, foi ou será vítima de violência sexual na infância. Na realidade, este número dantesco significa que numa turma com 25 crianças, cinco destas crianças serão abusadas sexualmente e por alguém próximo e da sua confiança; muitas vezes por alguém da própria família. Numa escola com 10 turmas, serão 50 as crianças que serão vítimas.
Sabemos que a maioria destas crianças vitimadas só partilha a sua história e anos ou décadas mais tarde, quando são adultas. Entretanto, crescem e sofrem em silêncio, enquanto os abusadores continuam a abusar de outras crianças. Por exemplo, a média de idades dos homens que procuram o apoio da Quebrar o Silêncio é de 40 anos. A grande maioria destes casos ocorreu na infância.
Este é um dos motivos pelos quais é urgente alargarmos o período do direito à denúncia. Sabemos também que os abusadores tendencialmente abusam de várias crianças.
Muitas destas vítimas quando denunciam, não o fazem porque procuram justiça para elas. Fazem-no na esperança de que o abusador seja parado e não volte a abusar de mais crianças. Foi esta a minha história. Quando aos trinta anos fui denunciar o homem que abusou sexualmente de mim quando tinha oito anos, a resposta que obtive foi “O crime prescreveu, já não há nada a fazer”. Entretanto, e desde então, conheci outros sobreviventes que foram abusados pelo mesmo homem.
Quero que saibam que o meu caso não é único. As evidências reforçam que o nível de reincidência destes abusadores é alto.
Assim, precisamos de mecanismos para que os abusadores sejam parados. Um desses mecanismos é o alargamento do período do direito à denúncia e da prescrição do crime.
Em maio de 2021 a Quebrar o Silêncio apresentou, em parceria com a Associação de Mulheres Contra a Violência, uma proposta para que as crianças vítimas de violência sexual pudessem apresentar queixa até aos 50 anos de idade, criando melhores condições para que pudessem denunciar o crime e respeitando o seu tempo. O objetivo era fazer com que Portugal se aproximasse do progresso de vários outros países. Sabemos que há vários países em que os crimes desta natureza não têm prescrição, como é o caso do Reino Unido, Islândia, Canadá, Nova Zelândia ou Austrália. Mesmo os países com prescrição, há vários que permitem denunciar o crime após décadas do mesmo ter sido cometido, como é o caso da Alemanha, França ou Espanha.
A nossa proposta foi aprovada, aqui mesmo, na Assembleia da República em outubro de 2021. No entanto, quando o governo foi dissolvido no final desse ano, a aprovação perdeu o efeito. Acreditamos que está na altura de recuperar esta proposta para fazer avançar os direitos humanos das crianças que são vítimas de violência sexual.
Por isso apelo aqui, para a urgência de alargarmos o período do direito à denúncia e da prescrição do crime. O aumento de dois anos, não é suficiente. Não podemos avançar com uma velocidade glaciar nestas matérias. O aumento dos casos durante a pandemia é uma realidade, o aumento de casos através da internet e redes sociais continua a aumentar também. Precisamos de mais mecanismos, não só na prevenção como na possibilidade de denunciar. Reconhecendo a dimensão traumática desta forma de violência, o próximo passo deve ser o aumento significativo do prazo para denunciar.
Obrigado.