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27 de Março de 2023

Abuso sexual de crianças e incesto emocional

Incesto emocional pode ser descrito como um modelo de relação pouco saudável em que os pais procuram a criança para apoio, conforto e até para a resolução de problemas. Esta procura carrega em si uma carga sexualizada, mas que nunca chega a ter uma dimensão física.

Esta dinâmica familiar, que por vezes também é referida por incesto camuflado, não vem (ainda) referenciada no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais – Quinta Edição (DSM-5), mas não deixa, por isso, de ser alvo de estudo e investigações. Existem teorias e ferramentas para identificar sinais de que possa estar a acontecer e quais as suas consequências como, por exemplo, a escala Childhood Emotional Incest Scale (CEIS).

«O incesto emocional não requer contacto físico»

O nome pode suscitar questões sobre a sua concretização, uma vez que o incesto emocional não requer contacto físico. Podemos dizer que se trata de uma proximidade emocional e sexualizada por parte dos cuidadores, que é inadequada e imprópria. Mesmo que os pais não tenham perceção e consciência dos seus atos, o incesto emocional pode afetar o desenvolvimento saudável da criança e ter consequências devastadoras.

Numa dinâmica de incesto emocional, os pais esbatem os limites dos seus papéis e responsabilidades e elevam a criança ao nível de parceiro. Ou seja, em vez de as crianças serem protegidas e cuidadas, são levadas a inverter os papéis e a assumir o lugar de cuidador dos próprios progenitores (parentificação), sendo solicitadas para ajudar na resolução de problemas e até mesmo para dar conselhos românticos. Neste modelo de relação é comum que as crianças não vejam as suas necessidades saciadas, pois no centro desta dinâmica familiar estão só as necessidades dos pais.

«O incesto emocional pode afetar o desenvolvimento saudável da criança e ter consequências devastadoras.»

Para a criança, esta relação pode ser imensamente confusa visto que a deixa sem saber qual é o seu lugar e também quais são os limites do que é adequado e impróprio na relação que os pais estabelecem com ela. É comum que a criança se sinta mais adulta do que os seus pares e que sinta ter mais maturidade do que na realidade tem, uma vez que é procurada pelos pais para aconselhamento, conforto e resolução de problemas. A criança é o “ombro amigo” e é usada quando os cuidadores precisam, quando confidenciam pormenores das suas vidas que não contam a mais ninguém, o que pode contribuir para que ela se sinta, a determinada altura, especial. No entanto, este papel pode originar uma fatura danosa a nível do desenvolvimento, nomeadamente porque impede a criança de o ser e de ter a infância que merece, uma onde os pais cuidam de si. Ela cresce sem que os cuidadores estejam focados nela, acabando por negligenciá-la e deixá-la a navegar sozinha a infância e as relações com os outros. No fundo as suas necessidades sociais e emocionais mais básicas são ignoradas e nunca satisfeitas, porque o bem-estar dos pais vem sempre em primeiro lugar.

Sinais de incesto emocional

É preciso reconhecer que, embora não haja uma dimensão física, o incesto emocional entra num território sexualizado e pode ter uma carga altamente sexualizada. Por exemplo, os pais podem invadir a privacidade da criança e não respeitar os limites do seu corpo, fazendo referências ou comentários sexualizados sobre o corpo da criança. Outro exemplo é quando dormem na mesma cama com ela até a uma idade avançada. Também podem ter conversas sobre encontros sexuais que tiveram ou levar a criança para encontros amorosos. Há uma romantização e sexualização da relação sem nunca haver uma concretização propriamente física, o que pode resultar num estado de confusão da criança relativamente à relação que os pais têm com ela ou qual o seu papel nessa relação. Assim, é comum a mãe ou o pai confidenciarem com a criança algo íntimo e sexual, cujo teor pode ser incompreensível para a criança, mas que sente ter-lhe sido atribuído um papel diferente, especial ou até mesmo privilegiado.

Outros sinais que podem ser comuns são quando os pais:

  • Pedem que o filho os conforte (desabafam ou choram para chamar a atenção da criança);
  • Partilham segredos íntimos e de teor sexualizado (ex: fazer queixas sobre a vida sexual dos próprios pais);
  • Centram a atenção da criança neles, desencorajando que ela tenha amizades com os seus pares;
  • Demonstram ciúmes quando a criança passa tempo longe deles ou quando a criança apresenta mais autonomia e desejo de liberdade;
  • Usam a criança como fonte de elogios, glorificação e reforço emocional.

Como consequência do incesto emocional, a criança é negligenciada e em detrimento do bem-estar dos cuidadores. Acaba por não ter o tempo que necessita com os seus pares nem desenvolver relações de amizade saudáveis. A criança pode começar a sentir-se responsável pelas emoções dos outros e pelo bem-estar das outras pessoas, acabando por desenvolver atitudes de constante cuidado para com e de tentar agradar ao outro. A criança pode também desenvolver sentimentos ambíguos de amor/ódio pelo progenitor que pratica incesto emocional. Segundo um estudo de 2015, este tipo de situações está associado a problemas de gestão e regulação das emoções por parte das crianças, afetando o seu desenvolvimento.

Incesto emocional e violência sexual contra crianças

Ao ocupar o papel de cuidador, a criança acaba por não ver as suas necessidades satisfeitas. Como consequência, ela poderá ficar mais vulnerável à violência sexual. Um abusador que se aperceba desta fragilidade pode aproveitá-la para iniciar uma relação com a criança e dar-lhe a atenção de que ela tanto necessita. O abusador toma, assim, o papel do adulto que se interessa pela criança, que a escuta verdadeiramente e que está presente para a ajudar. É uma estratégia planeada para se aproximar da criança e para ser reconhecido como um adulto de confiança, um que a criança pode procurar se tiver algum problema ou necessidade. As condições estão reunidas para começar a escalar a manipulação sobre a criança, isolá-la para garantir momentos a sós, sexualizar as conversas que têm e, claro, para a dessensibilizar ao toque.

Na Quebrar o Silêncio, muitos dos homens que foram vítimas de violência sexual relatam que viveram em ambientes familiares pouco centrados nas necessidades da crianças (mesmo que, para terceiros, isso não fosse óbvio) e também com modelos de relação pouco saudáveis, como é o caso do incesto emocional. É comum serem referidos exemplos de mães que entram sem autorização no banho do filho, já adolescente, com o pretexto de que vão certificar-se que a zona genital está lavada corretamente, mães que dormem na mesma cama com o filho até este ser adulto, ou em que há uma relação com uma carga sexualmente presente que deturpa o papel de filho e o torna num confidente/melhor amigo ou algo mais. Na área das mulheres, existem também casos igualmente desadequados, em que os pais se apresentam como o namorado das filhas, o futuro marido, a cara-metade, ou o seu príncipe, entre outras situações.

O incesto emocional é um modelo de relação familiar no qual os pais ultrapassam as fronteiras saudáveis na relação que têm com os filhos, diluindo os limites do que é adequado e desadequado, e que tem uma carga sexualizada sem haver contacto físico. Quando falamos de violência sexual contra crianças é fundamental compreendermos a complexidade desta realidade e também as diferentes extensões e de que forma estão interligadas.

Para algumas pessoas o incesto emocional é uma forma de abuso sexual de crianças, para outras não é, mas como Kathy Hardie-Williams refere, não deixa de ser uma forma de abuso e violência contra a criança. Independentemente da posição individual de cada um, não podemos negar a relação que tem com a violência sexual contra crianças, nomeadamente a de criar mais vulnerabilidades para que as crianças sejam vitimadas.

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