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4 de Setembro de 2023

Abuso sexual: “Não consigo descansar e estou sempre alerta. É como se o abuso estivesse em todo o lado”

AVISO: ao longo do texto são enumerados exemplos referentes a histórias de violência sexual. Se a leitura for desconfortável ou dolorosa, recomendamos que a interrompa e contacte a associação Quebrar o Silêncio através da Linha de Apoio 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt.

 

Quando alguém é vítima de violência sexual, a sua sensação de segurança, percepção de controlo e capacidade de regular as emoções podem ser fortemente abaladas. Este evento traumático, tal como as emoções e sensações que daí advêm, ficam associadas a algo perigoso e ameaçador, mesmo que de forma inconsciente. Quando o sobrevivente está perante algo que de algum modo se relaciona com o trauma vivenciado, estas memórias são ativadas, trazendo de volta sensações e emoções vividas, fazendo-o sentir que está novamente em perigo ou que algo mau vai acontecer.

Viver neste estado constante de vigilância pode ser extremamente disruptivo, uma vez que o sobrevivente sente que é levado para o evento traumático a todo e a qualquer momento. O mundo passa a ser percepcionado como um lugar perigoso e inseguro, o que gera uma enorme ansiedade, hipervigilância, sensação de insegurança e falta de controlo. Numa tentativa de minimizar o mal estar, o sobrevivente acaba por adoptar comportamentos de evitamento, o que interfere com a sua vida pessoal, social e profissional.

 

Quando o trauma do passado afeta o presente

Dependendo da história de abuso, estes desencadeadores (comummente também denominados como “gatilhos”) podem ser diversos, desde lugares, pessoas, objetos, odores, palavras, até situações do quotidiano. Por exemplo, alguém que no decorrer dos abusos era recorrentemente humilhado, pode sentir-se muito ansioso quando o chefe é mais autoritário ou quando tomam uma decisão por si. Estes desencadeadores também podem incluir sensações físicas, como sons, sabores, texturas e cheiros (ex: se o abusador cheirava habitualmente a álcool ou a tabaco, o sobrevivente pode não conseguir suportar este cheiro ou até estar na presença de bebidas alcoólicas ou de tabaco). Em algumas situações, podem ainda ser determinadas características associadas a quem cometeu os abusos, como por exemplo, ser homem, ter barba, ser alto ou ser uma figura de autoridade.

Mesmo não estando numa situação de perigo, muitas vezes estes estímulos, que remetem ao abuso, podem ser tão intensos que existe uma generalização a outros estímulos semelhantes, dando a sensação de que “o abuso está em todo o lado”. Assim, a ideia de perigo iminente pode ser constante na vida dos sobreviventes, o que gera um estado ininterrupto de alerta (hipervigilância). Por exemplo, um sobrevivente cujos abusos aconteciam no momento do banho, pode ser invadido por memórias intrusivas quando está no duche ou apenas por entrar numa casa de banho, mesmo que não seja aquela onde o abuso aconteceu. Este desencadeador pode ser generalizado a outras situações, fazendo com que o sobrevivente fique extremamente ansioso quando ouve o som de água ou sente água na sua pele. Isto pode levar a que contextos como ir à piscina ou à praia sejam evitados, até afetar tarefas do quotidiano como lavar a cara ou tomar banho.

Do mesmo modo, é comum que o toque seja ativador de memórias do abuso, o que faz com o sobrevivente se sinta extremamente ansioso sempre que tem contactos íntimos e relações sexuais, levando-o a evitar estas situações. Com o passar do tempo, pode mesmo começar a evitar o contacto físico com terceiros (como abraços ou um aperto de mão) e, eventualmente, não se sentir capaz de estar fisicamente próximo de outras pessoas (ex: em transportes públicos, concertos, discotecas, etc.), levando a que gradualmente deixe de frequentar determinados locais ou, em certos casos, até evitar sair de casa.

Com o apoio especializado em trauma e violência sexual, é possível compreender o impacto do abuso e trabalhar estratégias que permitem antecipar e gerir desencadeadores do evento traumático, para que estes se tornem menos desestabilizadores.

Depois da terapia, é comum que o sobrevivente se sinta capaz de lidar com possíveis desencadeadores, tal como com memórias, pensamentos e emoções associadas ao abuso. Isto aumenta a sensação de segurança e controlo sobre a vida, o que lhe permitirá conseguir distanciar-se do passado, focar-se no momento presente, e fazer planos para o futuro.

Se se identifica com este texto e necessita de apoio contacte-nos. A Quebrar o Silêncio está disponível para o receber através da Linha de Apoio 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt.