As notícias relacionadas com os abusos sexuais na igreja estão a deixar vítimas em crise. A associação Quebrar o Silêncio registou, esta semana, um aumento dos pedidos de apoio relacionados com os casos de abuso sexual no contexto da igreja. “São homens que foram vítimas de violência sexual na infância e que não conseguem ter um momento de paz, pois são constantemente confrontados com notícias de abuso sexual. Para estas vítimas é um constante reviver das suas próprias histórias”, refere Ângelo Fernandes, fundador da associação.
Os homens que, no passado, já haviam procurado o apoio psicológico da Quebrar o Silêncio partilham o mesmo sentimento. “Os homens referem que estes são momentos muito difíceis de gerir devido à enorme exposição mediática. Observamos a intensificação das consequências geradas pelo trauma do abuso sexual, como o aumento de pensamentos e memórias indesejadas do abuso, flashbacks, aumento da ansiedade, angústia e tristeza, entre outras”, indica o presidente da Quebrar o Silêncio. “Mesmo quando as vítimas decidem não ver mais notícias, o tema está tão presente no contexto do seu trabalho ou mesmo nas suas próprias casas, que não há como fugir ou ter um momento de paz.”
Reforçar o apoio disponível para as vítimas
Para combater esta situação e para que nenhuma vítima fique sem apoio, a Quebrar o Silêncio apela a que se sejam colocados os contactos das organizações de apoio especializado às vítimas de violência sexual nas notícias sobre abusos sexuais.
“A maioria das vítimas não partilha a sua história de abuso por vergonha, por medo da reação das outras pessoas, entre muitos outros motivos, e nestes momentos mediáticos acabam por gerir tudo isto em segredo. Do nosso ponto de vista, é importante que as notícias incluam, em nota de rodapé, os contactos das associações de apoio especializado para vítimas de violência sexual. A inclusão destes contactos, como se faz com temas como o suicídio, é fundamental para que as vítimas, que desconhecem estas respostas, tenham oportunidade de dar o primeiro passo para procurarem ajuda, quando se sentirem preparadas.” avança Ângelo Fernandes.
Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual
Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
Linha de apoio: 910 846 589
Email: apoio@quebrarosilencio.pt
Associação de Mulheres Contra a Violência – AMCV
Linha de apoio: 213 802 165
Email: ca@amcv.org.pt
Emancipação, Igualdade e Recuperação – EIR UMAR
Linha de apoio: 914 736 078
Email: eir.centro@gmail.com
Aumento da prescrição dos crimes sexuais
Em 2021 a Quebrar o Silêncio e a Associação de Mulheres Contra a Violência colaboraram na redação de uma proposta para aumentar o prazo de prescrição dos crimes sexuais contra crianças. As organizações pretendiam alargar o prazo da prescrição para 15 anos após a vítima atingir os 35 anos de idade, ou seja, até aos 50 anos de idade da vítima. A proposta foi aprovada na Assembleia da República em outubro de 2021, mas o processo legislativo acabou por ele próprio prescrever com a queda do anterior Governo.
Com a desocultação do cenário dantesco exposto pela Comissão Independente, a Quebrar o Silêncio acredita que esta é uma nova oportunidade para fazer progredir a lei portuguesa em conformidade com vários países que têm avançado nestas matérias. O Reino Unido, Islândia, Canadá, Nova Zelândia e Austrália não têm limite para a denúncia de crimes sexuais contra menores. Mesmo nos países onde os há, os prazos são bastante mais alargados do que acontece em Portugal. É o caso da Alemanha, em que o prazo é de 20 anos quando a vítima atinge os 30 anos de idade — ou seja, pode denunciar até aos 50 anos de idade. Em Portugal, o prazo é de apenas 5 anos após a vítima menor atingir a maioridade, ou seja, até aos 23 anos de idade. Se considerarmos que a maioria das pessoas abusadas sexualmente na infância demora mais de 20 ou 30 anos a partilhar a sua história de abuso, este prazo não é suficiente e não respeita o tempo das vítimas.
Que mudanças podemos aguardar da igreja?
Esta semana começou com a publicação do relatório pela Comissão Independente. Após um ano de trabalho, foram desocultadas 4815 vítimas de violência sexual no contexto da igreja desde 1950.
Os abusos sexuais têm uma dimensão sistémica, mas o silenciamento dos casos na igreja e a proteção dos abusadores foi estrutural. Como consequência, acreditamos que as medidas e respostas terão de romper com a cultura de ocultação e de autoproteção que se instalou na igreja. Os crimes têm de ser denunciados sem reservas, demoras ou questionamentos; os abusadores têm de ser investigados pelas autoridades policiais competentes e julgados conforme a lei portuguesa.