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18 de Setembro de 2025

António Capelo e as vítimas de assédio e abuso sexual

A Quebrar o Silêncio, associação de apoio a homens sobreviventes de violência sexual, manifesta a sua profunda preocupação perante os testemunhos públicos que descrevem situações de assédio e violência sexual atribuídas ao ator e professor António Capelo, alguns envolvendo menores de idade, ocorridos ao longo de décadas.

Segundo Ângelo Fernandes, fundador da associação, «estes relatos são perturbadores, mas não surpreendentes. Perturbadores porque descrevem abusos sexuais que não deveriam ter lugar em nenhum espaço de ensino ou de criação artística. Não surpreendentes porque seguem um guião que conhecemos demasiado bem: o de abusadores que exploram posições de poder, beneficiam de silêncio cúmplice e recorrem a estratégias repetidas de manipulação e controlo das vítimas».

O que está em causa, sublinha a Quebrar o Silêncio, não é apenas a conduta de um homem isolado, mas uma dinâmica estrutural. «O que une Capelo a tantos outros não é a biografia, mas a posição assimétrica de poder em relação às vítimas. Professor, diretor artístico, figura pública com prestígio, explora jovens em formação, desejosos de reconhecimento», afirma Ângelo Fernandes.

Os testemunhos públicos descrevem um padrão já identificado na literatura especializada e no guia de prevenção da Quebrar o Silêncio: aproximação progressiva, contactos aparentemente inofensivos, mensagens sexualizadas, dessensibilização ao toque e, finalmente, cruzamento das fronteiras entre pedagogia e intimidade. «É um processo de escalada que mina a resistência das vítimas, sem que estas se apercebam, e que explora as suas vulnerabilidades», refere o diretor da associação.

Tal como em muitos outros casos, perante as denúncias, a resposta de Capelo segue também um guião conhecido: negar intenções, justificar comportamentos como expressão de afeto ou liberdade artística e contra-atacar através de queixas por difamação. «Quando um abusador apresenta uma queixa-crime contra iniciativas que procuram dar voz às vítimas, como a página Não Tenhas Medo, não está apenas a defender-se: está a tentar inverter a posição de poder e intimidar quem denuncia», alerta Ângelo Fernandes.

A Quebrar o Silêncio recorda que as consequências do abuso sexual não se esgotam no momento do abuso sexual. «Na nossa experiência de acompanhamento, ouvimos homens que viveram situações semelhantes e carregaram durante anos o peso do silêncio e da vergonha. Muitos não reconheceram de imediato o que lhes acontecia como abuso, mas sofreram as consequências ao longo da vida: ansiedade, depressão, dificuldades em estabelecer relações de confiança, impacto nas relações afetivas e sexuais.»

Apelo à ação coletiva

A Quebrar o Silêncio sublinha que não basta olhar para o caso como sendo pontual: é preciso questionar o contexto. «O teatro é um espaço de criação, mas não pode ser palco de impunidade. Não haja ilusões: António Capelo não está sozinho. Há muitos outros em escolas, clubes, igrejas, empresas, associações culturais e desportivas. Todos dependem da mesma equação: poder de um lado, vulnerabilidade do outro; silêncio cúmplice em redor; descrédito das vítimas quando falam. É esta estrutura que permite que o abuso se perpetue», frisa Ângelo Fernandes.

A Quebrar o Silêncio defende medidas concretas e urgentes: canais seguros de denúncia, políticas públicas centradas na proteção das vítimas, formação obrigatória para todos os profissionais que trabalhem com crianças e jovens, e um compromisso coletivo de acreditar nas vítimas.

«Se não aprendermos com este caso, haverá muitos outros. A cada silêncio e a cada descrédito, a sociedade portuguesa torna-se cúmplice dos abusadores, e o Estado não pode continuar a falhar neste dever fundamental de proteção», conclui Fernandes.