O apagão de ontem pode ter sido um contratempo técnico. Mas para os homens sobreviventes de violência sexual, pode ter representado muito mais do que isso. Pode ter sido um momento em que a sensação de segurança e controlo, já profundamente abalada, se esfumou por completo e os deixou em crise.
O que tem em comum um apagão, como o que se viveu ontem, com a experiência de um homem que foi vítima de violência sexual? À primeira vista, muito pouco. Mas se escutarmos com atenção, o que muitos destes sobreviventes nos dizem, encontramos um ponto de contacto profundo: a sensação esmagadora da perda abrupta de controlo.
Ser vítima de violência sexual implica a total subversão da autonomia pessoal. O corpo torna-se num território violado. O que acontece não é desejado, não é consentido, e não é controlado. Esta experiência traumática repercute-se ao longo do tempo, deixando marcas profundas na forma como a pessoa interpreta e reage ao mundo, percecionando-o como potencialmente perigoso. Assim, qualquer evento que evoque, mesmo de forma simbólica, essa perda de controlo — uma pandemia, um colapso digital, uma notícia inesperada, um desaparecimento súbito de dados — pode funcionar como um desencadeador emocional. E o corpo pode ser levado a lembrar-se do que a mente tenta esquecer.
Este tipo de situação atípica, imprevisível e sem precedentes, abala também algo fundamental: a sensação de segurança. Para muitos sobreviventes de violência sexual, o quotidiano já é vivido num estado de hipervigilância, como se o perigo estivesse sempre à espreita. Quando o mundo exterior confirma, mesmo que momentaneamente, essa perceção de ameaça, a resposta emocional intensifica-se. Ou seja, a reação interna pode ser desproporcional, mas não é irracional: é traumática. O apagão já não é só a ausência de sinal, é, também, o colapso de um frágil equilíbrio entre o dentro e o fora, entre o previsível e o caótico. E essa instabilidade pode reativar memórias sensoriais e emocionais ligadas à violência sofrida: a ausência de controlo, o medo súbito, e o sentimento de que «algo de muito mau está a acontecer e eu não consigo impedir». Embora não sejam comparáveis em termos de violência, a suspensão abrupta da normalidade e da capacidade de previsão são elementos essenciais para o bem-estar psicológico de quem vive com este tipo de trauma.
Nos homens, estas reações são frequentemente silenciadas ou desvalorizadas — pelas normas societais que ainda lhes impõe o papel de inquebráveis, pela vergonha internalizada de terem sido vítimas de abuso sexual, nomeadamente como sinal de fraqueza. E, no entanto, eles existem, em silêncio, e a tentar viver como se nada tivesse acontecido. Esta realidade dificulta o reconhecimento e a verbalização do sofrimento, perpetuando o silêncio que rodeia o abuso sexual masculino.
Por isso, é urgente que compreendamos que o controlo — ou a ilusão dele — é um elemento fundamental na recuperação do trauma dos homens que foram vítimas de violência sexual. O controlo sobre o corpo, sobre a narrativa, e sobre o quotidiano. E isto inclui gestos como decidir o que se partilha, com quem, e quando; e ter controlo total nessas tomadas de decisão.
Desvalorizar ou ignorar o impacto que acontecimentos externos podem ter nos sobreviventes deste tipo de trauma é contribuir para a manutenção de uma invisibilidade social que tem consequências reais. Urge desenvolver uma escuta mais empática e informada, que reconheça que o trauma sexual não pertence exclusivamente ao passado. Pelo contrário, manifesta-se frequentemente no presente, e que pode ser reativado por eventos que rompem com o senso de previsibilidade e segurança.
O apagão de ontem pode ter sido, para a maioria, uma perturbação passageira. Para outros, foi uma ameaça simbólica com ressonâncias muito mais profundas. Talvez o apagão também sirva como um convite a refletir sobre a nossa incapacidade coletiva de reconhecer e validar o sofrimento daqueles que, em silêncio, continuam a tentar reconstruir-se após uma violência que nunca deveria ter acontecido.