Tem vindo a ser discutida a possibilidade de tornar o crime de violação um crime público. À primeira vista, esta proposta pode parecer uma medida bem-intencionada e protetora. No entanto, a Quebrar o Silêncio acredita que pode acarretar riscos sérios para as vítimas — sobretudo no que diz respeito à sua autonomia, segurança emocional e tempo necessário à recuperação do trauma.
Tornar a violação um crime público significaria que qualquer pessoa — profissional de saúde, familiar, agente de autoridade, colega ou amigo — poderia desencadear um processo-crime, mesmo sem o consentimento da vítima. Embora o objetivo possa ser garantir que nenhum caso fique impune, na prática esta alteração colocaria o foco na punição, mas ignoraria por completo o bem-estar, a vontade, a preparação e o tempo de quem sofreu a violência sexual.
Na Quebrar o Silêncio acompanhamos de perto os impactos profundos que a violência sexual tem nas vítimas. Sabemos que o momento de denunciar é um processo altamente pessoal e delicado. Pode demorar meses ou até décadas até que a vítima se sinta segura para falar. Forçar uma denúncia ou envolver a vítima num processo penal para o qual não está preparada — mesmo com garantias legais de salvaguarda — pode ser re-traumatizante e gerar ainda mais sofrimento e silenciamento.
Antes de discutir se o crime de violação deve ou não ser público, é necessário perguntar: estamos a garantir justiça às vítimas quando os casos chegam aos tribunais? Infelizmente, nem sempre. Um caso ocorrido em Coimbra mostra exatamente isso. Um estudante universitário foi condenado por violar uma colega. A prova foi clara, os juízes consideraram o depoimento do agressor inverosímil, e o tribunal reconheceu a violência. No entanto, a pena de prisão foi suspensa, e o agressor saiu em liberdade. A justificação do tribunal foi de que «os tribunais não servem para destruir vidas». Mas a vida da vítima, já profundamente afetada, parece ter ficado esquecida nesse raciocínio.
É neste contexto que importa refletir. Se o sistema judicial não garante penas efetivas, se muitas vítimas sentem medo de não ser levadas a sério, se enfrentam o risco de julgamento social ou institucional — como podemos esperar que a obrigatoriedade de denúncia represente um avanço?
Antes de tornar o crime de violação público, é fundamental:
- Alargar os prazos de prescrição. Atualmente, o prazo para denunciar crimes sexuais cometidos contra adultos é de apenas 12 meses. Um período manifestamente insuficiente, quando consideramos o tempo que muitas vítimas precisam para reconhecer e verbalizar o que viveram.
- Avaliar seriamente a abolição dos prazos de prescrição para crimes sexuais, como acontece noutros países.
- Formar, de forma obrigatória e especializada, todos os profissionais que integram o sistema judicial, as forças policiais, e os serviços de saúde e apoio social sobre trauma e violência sexual.
No caso dos homens vítimas de violência sexual, que a Quebrar o Silêncio acompanha diariamente, sabemos que o silêncio é muitas vezes imposto pela vergonha, pelo estigma e pelo medo de não serem levados a sério. Os homens demoram, em média, mais de 20 anos a procurar ajuda. Se ao procurar apoio o risco for o de ver a sua história transformada automaticamente num processo judicial, muitos destes homens não irão dar esse passo. E isso pode deixá-los completamente isolados, sem acesso ao apoio especializado de que necessitam.
Acreditamos que a justiça deve ser feita, mas nunca à revelia das vítimas. A decisão de tornar o crime de violação público, tal como está a ser discutida, não respeita a dimensão traumática da violência sexual nem assegura um sistema que acolha e proteja verdadeiramente quem sofreu. Antes de legislar, é fundamental escutar as vítimas, garantir-lhes autonomia e construir respostas que estejam verdadeiramente ao serviço da sua recuperação.
A justiça que não escuta quem mais sofreu arrisca-se a repetir a violência, mesmo que por outras vias.