Blogue

24 de Junho de 2024

Como a dissociação afeta a vida dos sobreviventes

A dissociação é um mecanismo de defesa automático e inconsciente do cérebro que permite ao sobrevivente desconectar-se da realidade e evitar o sofrimento gerado pelo trauma do abuso sexual. Embora proteja temporariamente o sobrevivente, a longo prazo pode ter um impacto negativo na sua vida. A dissociação pode apresentar-se de formas diferentes:

 

Ver também: Dissociação: quando acontece e quais os sinais?

 

Despersonalização

O sobrevivente sente-se recorrentemente distante de si mesmo, da sua mente e do próprio corpo. Este distanciamento faz com que o sobrevivente sinta que as suas emoções, pensamentos e comportamentos, não são seus, o que pode gerar pensamentos como “não tenho identidade” ou “não sei quem sou”. Alguns sobreviventes podem sentir que determinadas partes do corpo não lhe pertencem (por exemplo, olhar para as suas mãos e senti-las como algo externo a si). Do mesmo modo, sensações corporais como sede, fome, frio ou calor podem ser experienciadas como se fossem estranhas e não como algo que faz parte de si. O sobrevivente pode olhar para o reflexo no espelho e não se identificar, como se aquela pessoa não fosse ele.

É comum sentir-se um observador externo da sua vida, dos próprios pensamentos, sentimentos, sensações, corpo ou ações (como se visualizasse os eventos na terceira pessoa como num filme ou num videojogo). O sobrevivente pode, por exemplo, sentir-se anestesiado, sentir que está num sonho, ter a sensação de estar em câmara lenta, sentir que está a perder o controlo das próprias ações, como se fosse um robot ou estivesse em modo automático. 

 

Desrealização

A realidade é experienciada frequentemente como sendo irreal, com distanciamento e, por vezes, de forma distorcida. O ambiente ao redor pode ser percecionado como artificial, incolor ou inerte. Em algumas situações o sobrevivente pode ter a sensação de que as coisas estão em câmara lenta, de que está entre as nuvens ou numa bolha. Também há quem sinta estar num sonho, ver coisas desfocadas ou até sentir que é como se existisse um véu ou vidro que o separa do mundo à sua volta.

 

Alterações e confusão de identidade 

O sobrevivente pode sentir que existe uma descontinuidade ou fragmentação da sua identidade. Pode experienciar alterações na sua identidade a diversos níveis, nomeadamente: na forma como perceciona o mundo, nas suas opiniões, modo de falar, comportamentos, consciência,  memória e afetos. Por exemplo, num dado momento o sobrevivente pode ter uma determinada posição acerca de um assunto e de forma repentina mudar a sua opinião e ter uma postura contraditória. Do mesmo modo, o sobrevivente pode sentir-se emocionalmente próximo de uma pessoa e subitamente perder a ligação e afastar-se. Em algumas situações o sobrevivente pode experienciar vozes (por exemplo vozes de crianças), pensamentos, emoções e impulsos intrusivos.

Tudo isto leva o sobrevivente a sentir que não é dono de si mesmo e que, por isso, não tem o controlo sobre os pensamentos, o corpo e as suas ações.

 

Amnésia dissociativa

O sobrevivente é incapaz de se recordar de determinadas informações sobre si e a sua história. No que diz respeito ao abuso sexual, as memórias podem ser fragmentadas, não sequenciais ou como se fossem “flashes”, e surgir apenas mais tarde na vida do sobrevivente, perante um desencadeador. Por exemplo, um sobrevivente que quando sente o cheiro intenso de uma determinada flor, pode ser levado para o abuso que aconteceu num jardim, o que traz à tona uma memória consciente que até então estava inacessível. A amnésia dissociativa tem uma função protetora para a vítima, particularmente nos casos em que os abusadores são simultaneamente os seus cuidadores (pai ou mãe), permitindo ao sobrevivente lidar com este duplo papel.

Ao longo do tempo, este esquecimento pode ir para além da violência sexual e tornar-se mais generalizado, por exemplo, sobreviventes que não têm memórias da casa onde cresceram ou até da sua infância. 

O sobrevivente pode não ter noção de que esta amnésia está presente e apenas quando confrontado com informações, das quais não tem memória, ou com relatos de outras pessoas que não são coerentes com as suas recordações, é que toma consciência de que ela existe.

O facto do sobrevivente experienciar uma ou mais forma de dissociação ao longo da sua vida e de forma recorrente, por vezes durante muitos anos, tem um impacto negativo nos vários contextos da sua vida; não só na forma como o sobrevivente se perceciona e se sente consigo mesmo, como nas relações que estabelece com os outros, na vida profissional, entre outros.

 

 

Se já experienciou uma ou mais situações enumeradas neste texto, saiba que a Quebrar o Silêncio pode ajudá-lo. Contacte-nos através da Linha de Apoio 910 846 589 ou do email apoio@quebrarosilencio.pt.