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6 de Janeiro de 2025

Crenças enraizadas que agravam a culpa e impedem a compreensão 

Este texto foi escrito originalmente para integrar o livro digital “Livro digital sobre violência sexual contra homens e rapazes“, um recurso que reune 20 reflexões sobre violência sexual contra homens e rapazes, publicado pela Quebrar o Silêncio.

Download do livro.

 

Trabalhando no setor sem fins lucrativos, acreditava ingenuamente que toda a gente na sociedade tinha uma compreensão fundamental de como os abusadores podiam transferir a culpa para o sobrevivente e por que razão os sobreviventes sentiam, de alguma forma, que deviam ter encorajado o abuso ou que deviam ter gostado. É evidente que não é esse o caso.

 

Mitos, estereótipos e crenças profundamente enraizadas

Quando um homem lhe diz que foi violado ou abusado sexualmente, qual é a primeira coisa em que pensa? Se for: “Isso não pode ser verdade, os homens não podem ser violados”, não está sozinho. Há muitas pessoas que ainda acreditam que um homem pode proteger-se ou que só as mulheres é que são violadas e que não é fisicamente possível um homem ser violado.

Os homens sobreviventes de violação e abuso sexual vivem com estes mitos todos os dias e alguns até acreditam neles, o que resulta em mais culpa, vergonha e auto-culpabilização, fazendo-os sentir responsáveis pelo que aconteceu.

Ainda mais enraizado é o facto de estes mitos e estereótipos serem, na realidade, crenças e atitudes que as pessoas têm de forma comum e persistente, mas que podem ser factualmente incorretas.

Muitas vezes, estes mitos e estereótipos resultam da necessidade de acreditar numa sociedade segura e justa, onde as coisas más não “acontecem” às “pessoas boas”. Caso contrário, se isso fosse verdade e as coisas más acontecessem às pessoas boas, isso significaria que ninguém estaria seguro e que poderia acontecer a qualquer pessoa.

Esta auto-proteção/auto-preservação é uma noção que nos mantém seguros num mundo cada vez mais inseguro. No entanto, isto também contribui para criar uma crença ainda mais forte de que os homens sobreviventes são os culpados, criando uma divisão entre “eles e nós” e dificultando ainda mais o acesso das pessoas à ajuda.

A natureza traumática do abuso sexual significa que os sobreviventes podem comportar-se de várias formas; alguns comportamentos podem ser considerados contraintuitivos. A perceção da ameaça pode influenciar o seu comportamento. Quando uma ameaça é colocada, seja ela real ou percecionada como tal, o cérebro entra em resposta de sobrevivência: luta, fuga, “flop”, congelamento ou amizade. O choque pode deixar o sobrevivente emocionalmente entorpecido ou sem forças, parecendo assim calmo e não afetado.

Os sobreviventes sentem frequentemente, ou são levados a sentir, que são culpados e, por isso, experienciam fortes sentimentos de vergonha e culpa. Alguns manifestam uma total falta de controlo e a recuperação do controlo ajudá-los-á a sentirem-se mais resistentes e a desenvolverem estratégias positivas para lidar com a situação.

Uma pessoa que tenha sido vítima de violência sexual pode ter dificuldade em estabelecer relações positivas e saudáveis, especialmente se o abuso tiver ocorrido durante a infância, que é a fase mais formativa da vida. Pode não ter experimentado qualquer outra forma de relacionamento, pelo que pode assumir que o comportamento abusivo é normal e, portanto, pode reproduzir padrões de comportamento abusivo semelhantes.

A violência sexual, especialmente na infância, pode ter efeitos profundos e duradouros. Estes podem ser de ordem psicológica, como a depressão, a perturbação de stress pós-traumático (PSPT) e a dificuldade em criar confiança; de ordem física, como as dores crónicas, os problemas gastrointestinais e a falta de saúde em geral; de ordem social, como as dificuldades em criar e manter relações positivas e saudáveis; e de ordem económica, como o recurso à criminalidade como forma de sobrevivência.

As crenças e atitudes permeiam a sociedade de forma insidiosa e profundamente enraizada. Algumas pessoas podem nem sequer se aperceber de que têm essas crenças ou compreender de onde elas vêm. A forma como respondemos aos sobreviventes é afectada pelas nossas próprias crenças e atitudes. Os sobreviventes são significativamente influenciados pelas suas próprias crenças e atitudes na forma como processam e lidam com o trauma do abuso.

 

 

Compreender e abordar estas questões requer uma mudança cultural no sentido de um maior entendimento e empatia para com os homens sobreviventes. A educação, as campanhas de sensibilização e a disponibilidade de serviços de apoio especializados podem ajudar a criar um ambiente em que os homens sobreviventes se sintam seguros para se apresentarem e receberem a ajuda de que necessitam.

Se um sobrevivente tiver acesso a apoio positivo de amigos, familiares ou profissionais, isso pode ter impacto na sua vontade de procurar ajuda e partilhar as suas experiências.

Embora possa ser extremamente difícil e desafiante ter uma perspetiva positiva, os sobreviventes que conseguem ter uma perspetiva positiva e acreditar na possibilidade de serem apoiados em relação ao trauma podem fomentar a resiliência e são mais encorajados a envolver-se na intervenção psicológica e no autocuidado.

Os sobreviventes aprendem formas de lidar com o trauma, e algumas podem ser mais eficazes do que outras e mais positivas do que outras. Estes mecanismos de sobrevivência podem influenciar as estratégias que um sobrevivente utiliza e que podem ter impacto na sua saúde mental e bem-estar geral. No entanto, são possíveis resultados positivos. Muitos sobreviventes demonstram uma resiliência notável e podem levar uma vida plena com o apoio adequado. Os principais fatores que contribuem para resultados positivos incluem:

 

Embora o processo possa ser desafiante, muitos sobreviventes encontram formas de recuperar e construir vidas com significado. Para que mais sobreviventes se sintam seguros ao procurar ajuda, a sociedade deve mudar as atitudes em relação a eles. É nosso dever adquirir conhecimento e compreender o impacto que a violência sexual pode ter nos homens sobreviventes. Só assim estaremos verdadeiramente a ajudar.

 

A nossa inspiração

A First Step existe graças à perseverança e determinação de Alastair Hilton e Tony Magee – eles próprios sobreviventes – e de um pequeno grupo de voluntários dedicados. Desafiando o silêncio que envolve os homens sobreviventes e a mensagem generalizada de “deixar em paz”, a First Step foi fundada a 29 de maio de 1997.

 

Origens humildes

Tal como muitas instituições de solidariedade social, passámos os primeiros anos num escritório alugado com uma única divisão para todos e com poucos recursos. Durante esse período, Tony Magee desempenhou um papel fundamental, dedicando o seu tempo a apoiar os homens que telefonavam para a linha de apoio ou visitavam a First Step. Formou agentes da polícia e assistentes sociais na Universidade De Montfort e inspirou uma geração de voluntários.

Tony dedicou grande parte da sua vida a garantir que a First Step arrancasse, florescesse e sobrevivesse aos tempos difíceis – incluindo períodos em que o financiamento era escasso e a organização quase se afundou. Esteve connosco durante quase 20 anos, até se afastar por motivos de saúde. Infelizmente, Tony faleceu em 2019, aos 68 anos (1951-2019).

A necessidade de um serviço de aconselhamento para sobreviventes do sexo masculino, o empenho da equipa e dos voluntários e o apoio atempado dos financiadores demonstram que conseguimos evoluir de uma operação de pequena escala para uma organização próspera.

Para mais informações sobre o trabalho da First Step Leicester, consulte a nossa página: Home – First Step Leicester Leicestershire and Rutland ou contacte-nos através do e-mail: contact@firststepleicester.org.uk

 

Beverley Radcliffe

Trabalha no setor sem fins lucrativos há mais de 30 anos, tendo desenvolvido a sua atividade a nível nacional e internacional em áreas como o racismo, a homofobia, a violação, a violência sexual contra crianças e jovens, e o apoio a menores que testemunham em tribunais criminais e de medicina legal. É autora de diversos artigos e coautora de um capítulo que explora experiências de trabalho em diferentes culturas, comunidades e países.