Nas ações de formação e sensibilização que a Quebrar o Silêncio dinamiza, somos muitas vezes questionados sobre o perfil dos homens vítimas de abuso sexual. A pergunta, por vezes implícita, é se conseguimos reconhecê-los, ou seja: se é possível distinguir, num grupo, quem foi vítima de quem não foi.
Essa expetativa, compreensível, assenta num equívoco importante: o de que o abuso deixa marcas visíveis que as pessoas possam detetar a olho nu. Importa clarificar de forma bastante inequívoca: qualquer homem pode ser vítima de abuso sexual, independentemente da idade, da orientação sexual, da identidade de género, da profissão ou de qualquer outra característica.
A verdade é esta: os sobreviventes fazem parte das nossas vidas. São os nossos amigos, colegas de trabalho, pais, irmãos, primos, filhos. São homens que conhecemos, com quem convivemos, com quem partilhamos rotinas e momentos. E, ainda assim, o que vemos é, muitas das vezes, apenas a superfície. É precisamente aqui que queremos centrar a atenção: muitos destes homens vivem aquilo que os próprios chamam de uma vida dupla. A realidade que projetam não corresponde, necessariamente, à realidade interna que experienciam — frequentemente marcada pelo sofrimento, vergonha, culpa e silêncio.
O que os outros veem pode ser um homem sociável, afável, assertivo, calmo, seguro de si, bem-disposto, sorridente. Um homem que parece estar bem. Mas por detrás dessa imagem construída — muitas vezes com um grande esforço diário — pode existir uma realidade bem diferente e viver assolado por sentimentos de solidão, vergonha, culpa, ansiedade, hipervigilância, flashbacks, medo, raiva ou baixa auto-estima.
Vários homens em acompanhamento partilham connosco que mantêm uma postura constante de leveza e normalidade — um “ar de quem está bem” — porque sabem que, se deixarem transparecer sofrimento ou insegurança, podem ser confrontados com a pergunta que mais temem: «O que se passa contigo?» E é aqui que surge o verdadeiro dilema: a possibilidade de falar sobre a sua história que pode ser, ao mesmo tempo, uma necessidade e um risco extremo. Porque partilhar implica confiar, expor-se, sair do papel de quem tem tudo sob controlo — e, para muitos homens, isso é algo que aprenderam a evitar desde cedo —, e claro, porque nunca sabem como poderá reagir a outra pessoa à partilha da história de abuso.
Viver com as consequências do abuso sexual não significa que todos os dias sejam maus. Significa, sim, que há uma parte da história que raramente é dita — não por falta de vontade, mas por falta de espaço, de segurança e de escuta. A Quebrar o Silêncio existe precisamente para criar esse espaço. Um lugar seguro onde os homens sobreviventes podem falar sem medo e sem juízos de valor.
Se é sobrevivente e se revê neste texto, queremos que saiba que não está sozinho. Pode contar connosco.